Capítulo 1 – Um Oi no Meio da Dor
Marta estava em casa, havia acabado de deixar o emprego e tentava reorganizar a própria vida. Do outro lado da tela, em um leito de hospital, Allyne enfrentava uma crise severa de endometriose. Era seu quarto dia sem conseguir dormir por causa das dores, nem mesmo os medicamentos mais fortes davam alívio. Sozinha e desconfortável, resolveu abrir o Tinder — talvez, entre uma notificação e outra, encontrasse distração para sua mente cansada.
Foi quando viu Marta. Deram match.
Com coragem tímida, Allyne mandou uma mensagem:
— Oi, bom dia!
Marta respondeu com carinho e atenção. Allyne contou que estava no hospital, sofrendo com a endometriose. Marta, surpresa com a coincidência, logo se compadeceu:
— Eu sei bem o que você está passando. Já tive endometriose também. Vai passar, você vai ficar bem. Eu prometo.
A conversa, que começou com um simples cumprimento, foi se aprofundando ao longo do dia. Compartilharam dores, histórias, sonhos… e quando perceberam, já era madrugada. Quase quatro da manhã.
Allyne hesitou em encerrar o papo.
— Tô com sono, mas também com medo de dormir e essa conversa tão boa acabar.
Marta sorriu do outro lado da tela e respondeu:
— Pode dormir tranquila. A gente vai continuar amanhã. Prometo que vou estar aqui.
— Promete mesmo? — perguntou Allyne, como se precisasse daquela segurança.
— Prometo — confirmou Marta.
E assim foi. Dia após dia, elas continuaram se falando. A cada conversa, um laço novo era costurado entre as duas. Mas havia algo não resolvido no coração de Allyne. Antes de conhecer Marta, ela estava conversando com um rapaz. A dúvida sobre seus sentimentos a fez se afastar por alguns dias. Nesse tempo, adoeceu novamente. E, na solidão do quarto, percebeu o quanto Marta fazia falta. O quanto sua presença, mesmo à distância, era essencial.
Foi então que tomou uma decisão: voltou a falar com Marta, sem rodeios, e se declarou.
Disse que nunca havia namorado uma mulher antes. Que moravam em estados diferentes, embora próximos. Que nada era fácil. Mas que o que sentia era real.
Marta ouviu em silêncio, com o coração apertado — e cheio de esperança.
Algumas semanas depois, Allyne decidiu fazer o impossível parecer simples. Foi até a cidade de Marta acompanhada do pai. E ali, diante dela, segurando uma caixinha pequena nas mãos, fez o inesperado:
— Marta… quer namorar comigo?
Capítulo 2 – A Primeira Promessa
Marta ficou surpresa ao ver Allyne chegando com o pai. Mesmo tendo conversado sobre um encontro, ela não esperava que fosse tão rápido — nem tão intenso. Ver Allyne ali, de verdade, dava àquela conexão virtual um peso completamente novo.
O coração de Marta disparou quando viu a caixinha nas mãos da jovem. Allyne desceu do carro, nervosa, mas determinada. A dor da endometriose ainda rondava seu corpo, mas naquele momento, era o coração que falava mais alto.
Ela se aproximou de Marta, segurou suas mãos e disse, com a voz trêmula:
— Eu sei que isso tudo é meio loucura. A gente mal se conhece pessoalmente… moramos em estados diferentes, você trabalha, eu ainda estou tentando me encontrar, e... bom, eu nunca namorei uma mulher antes. Mas... você me tocou de um jeito que ninguém mais conseguiu. Você ficou comigo nos meus piores dias. Você me fez sorrir quando tudo doía. Por isso, mesmo com todos os obstáculos, eu vim aqui te perguntar: quer namorar comigo?
Marta sentiu os olhos marejarem. Eram muitas emoções de uma vez: a surpresa, a alegria, o medo… e, acima de tudo, o sentimento de que ali havia algo verdadeiro.
Ela sorriu, apertando as mãos de Allyne:
— Eu quero. Quero viver isso com você. Seja como for.
Elas se abraçaram, como se aquele gesto selasse não apenas o começo de um namoro, mas de uma promessa: a de tentarem, de acreditarem, de não deixarem o medo vencer.
Durante os dias que seguiram, Allyne ficou na casa de Marta. Conheceram-se de verdade: os jeitos, as manias, os silêncios. Dormiram juntas, riram muito, choraram também. Marta mostrou seus lugares favoritos — um café pequeno na esquina, a pracinha onde costumava pensar na vida. E Allyne, mesmo lidando com crises de dor, parecia florescer em cada sorriso trocado.
Mas, como toda visita, aquela também teve seu fim. Allyne precisava voltar. Na despedida, choraram abraçadas, mas prometeram se ver de novo logo.
O namoro à distância começava ali, entre chamadas de vídeo, mensagens de bom dia e saudades apertadas.
Parecia difícil. E era.
Mas onde há sentimento, há força.
Capítulo 3 – Entre Telas e Silêncios
A distância logo mostrou suas garras. No início, tudo era entusiasmo: mensagens o tempo todo, chamadas longas antes de dormir, promessas de futuro. Mas conforme os dias passavam, a rotina de Marta — com trabalho, horários apertados e cansaço acumulado — começou a pesar. Allyne, por sua vez, ainda sem emprego, passava os dias entre consultas médicas e momentos de solidão.
Ambas sentiam falta uma da outra, mas começaram a perceber como o tempo podia ser cruel quando não se está perto.
— Você sumiu hoje — disse Allyne numa noite, a voz magoada pelo celular.
— Eu saí do trabalho tão exausta… só queria tomar um banho e deitar. Mas isso não significa que eu não pensei em você — respondeu Marta, tentando equilibrar afeto com sinceridade.
O silêncio entre as duas ficou pesado. Era difícil para Allyne não se sentir deixada de lado. Era difícil para Marta carregar a culpa por estar fazendo o seu melhor — e ainda assim parecer pouco.
Ainda assim, entre tropeços, as duas buscavam se encontrar. Começaram a marcar videochamadas fixas, criaram um diário compartilhado online para escreverem uma para a outra, como se fosse uma ponte feita de palavras.
Mas uma nova dificuldade surgiu: ciúmes.
Allyne via Marta sair com amigos, postar fotos sorrindo, enquanto ela passava os dias em casa. E embora soubesse que não havia motivo para desconfiança, o medo de perder Marta crescia.
— Você ainda fala com outras pessoas do Tinder? — ela perguntou uma vez, sem conseguir esconder a insegurança.
Marta, surpresa, respondeu com firmeza:
— Não. Desde o momento em que você apareceu, não precisei de mais ninguém.
As palavras aliviaram Allyne, mas também a fizeram perceber que precisava confiar — e cuidar de si mesma. Decidiu procurar ajuda médica e psicológica, retomar a vida aos poucos, por ela e por Marta.
Foi nesse processo que decidiram marcar uma nova viagem. Allyne iria até Marta novamente, mas dessa vez por mais dias. Queriam viver o amor sem pressa, longe das telas, perto dos olhos, do toque.
E quando Allyne desceu do ônibus e viu Marta esperando com um buquê simples, mas cheio de significado, teve certeza de uma coisa:
O amor delas valia o esforço.
Capítulo 4 – Na Dor, o Amor Floresce
A segunda viagem de Allyne à cidade de Marta prometia ser mais tranquila. Dessa vez, ela ficaria mais dias, com tudo planejado: cafés tranquilos, noites de filme, passeios de mãos dadas. Era a chance de viver o que a distância tanto atrapalhava.
Mas no terceiro dia, a dor voltou. Forte. Cruel. Implacável.
Allyne acordou no meio da noite, suando, curvada, o rosto pálido. A endometriose, que vinha dando sinais leves nos últimos tempos, atacava com tudo. Marta, acordada pelo gemido de dor, levantou assustada e correu até o quarto.
— Amor? Que foi? Tá com dor?
— Muita… — Allyne respondeu, os olhos marejados. — Tá insuportável, Marta… não consigo…
Marta não pensou duas vezes. Pegou os documentos de Allyne, sua bolsa, e a levou ao hospital. Ficou com ela durante toda a madrugada, segurando sua mão enquanto ela recebia medicação na veia.
Ver Allyne naquela situação despertou em Marta um sentimento profundo de proteção. Ela não era só a garota do Tinder, a mulher dos bons dias trocados por mensagens. Era real. Humana. E vulnerável.
Nos dias seguintes, Marta assumiu o papel de cuidadora com naturalidade. Cozinhava comidinhas leves, preparava compressas, ficava deitada ao lado dela contando histórias para distraí-la da dor.
— Você não precisa fazer tudo isso… — disse Allyne certa noite, com os olhos úmidos.
— Mas eu quero. Eu tô com você pra tudo, não só nos dias bons — respondeu Marta, acariciando seu rosto.
Aquela viagem, que deveria ser leve, virou um mergulho na intimidade mais verdadeira: cuidar e ser cuidada. E ali, mesmo na dor, o amor floresceu mais forte.
Quando Allyne voltou para sua cidade, semanas depois, algo havia mudado. Não era só a saudade que apertava o peito. Era a certeza: estavam construindo algo real, mesmo com todas as dificuldades.
Na próxima visita, Marta seria quem viajaria.
E com ela, levava uma ideia…
Uma caixinha.
Com uma surpresa.
Capítulo 5 – A Caixinha de Marta
Dessa vez, foi Marta quem encarou a estrada.
Saiu do trabalho um pouco mais cedo, coração acelerado, mala pronta, e um pequeno embrulho guardado com carinho entre suas roupas. A viagem até a cidade de Allyne não era longa, mas o tempo parecia se arrastar. Cada quilômetro aproximava Marta da mulher que mudara sua vida em tão pouco tempo — e ela mal podia esperar para vê-la novamente.
Quando Allyne abriu a porta e viu Marta ali, de mochila nos ombros e sorriso aberto, correu para abraçá-la. Foi um daqueles abraços demorados, onde as palavras não são necessárias. Onde o corpo reconhece o lar.
Durante os primeiros dias da visita, Marta foi se adaptando ao universo de Allyne. Conheceu seus cantos preferidos, seus familiares, até mesmo sua médica, que acompanhava a luta contra a endometriose. A rotina era simples, mas havia algo mágico em partilhá-la. Dormir juntas na mesma cama, cozinhar lado a lado, rir de bobeiras no sofá.
Naquela noite em especial, Marta pediu para saírem um pouco. Levaram uma toalha, um vinho suave e alguns petiscos para o alto de uma colina próxima, onde dava pra ver as luzes da cidade. O céu estava limpo, salpicado de estrelas.
Allyne se deitou na toalha, olhando para o céu. Marta ficou um tempo em silêncio, respirando fundo, até criar coragem. Sentou-se ao lado dela e tirou a caixinha da bolsa.
— Lembra daquela primeira vez que você veio me ver? Você chegou com uma caixinha, me surpreendendo… — começou Marta.
Allyne sorriu, já emocionada.
— Hoje é minha vez — continuou Marta, abrindo a caixinha e revelando duas alianças delicadas, com uma pequena pedra de quartzo rosa no centro.
— Eu não sei o futuro. Não sei o que vem pela frente. Mas eu sei o que sinto. E sei que quero continuar caminhando com você, mesmo que às vezes a estrada doa. Mesmo que a distância ainda exista. Porque, Allyne… você é o amor mais verdadeiro que eu já conheci.
Allyne levou a mão à boca, os olhos cheios d’água.
— Isso é… um pedido de noivado? — perguntou com a voz trêmula.
— É um pedido de continuidade. De compromisso. De verdade. — respondeu Marta. — Quer continuar essa história comigo?
Allyne não hesitou.
— Claro que quero. Eu nunca tive tanta certeza de algo na vida.
Elas se beijaram sob as estrelas, selando mais uma promessa.
Duas mulheres, dois corações marcados por dores e distâncias, decidindo todos os dias continuar escolhendo uma à outra.
Capítulo 6 – Um Lugar Só Nosso
O pedido com as alianças trouxe mais do que emoção. Trouxe também perguntas. O que fariam a partir de agora? Continuariam em cidades diferentes? Visitas espaçadas, saudade diária? Ou era hora de pensar em algo mais concreto?
Marta foi a primeira a tocar no assunto, numa manhã tranquila, tomando café ao lado de Allyne:
— Já pensou… na gente morando juntas?
Allyne parou, colher de café no ar. Aquela ideia já havia passeado pela mente dela várias vezes, mas ouvir Marta dizer em voz alta fez parecer mais real.
— Eu já pensei. Mas… é um passo grande, né?
— É. Mas acho que a gente já passou por coisas grandes demais pra ter medo disso agora — respondeu Marta, sorrindo.
Elas começaram a conversar sobre possibilidades. Marta tinha mais estabilidade no trabalho, enquanto Allyne ainda se tratava e buscava oportunidades. A ideia mais viável era que Allyne se mudasse primeiro.
Mas, como tudo entre elas, não seria simples.
A primeira barreira foi emocional: contar para as famílias. A de Marta já sabia de sua orientação, mas nunca tinha visto um relacionamento dela tão sério. A de Allyne, por outro lado, ainda vivia em silêncio sobre o assunto.
Quando Allyne contou à mãe que pensava em morar com Marta, houve silêncio. Depois, perguntas duras, olhares confusos. Mas, surpreendentemente, o pai — que a acompanhara naquela primeira viagem — foi quem a apoiou primeiro.
— Você já sofreu demais, filha. Se essa mulher te faz feliz… então vá. Seja feliz. Eu estarei aqui.
Foi o apoio que Allyne precisava. Começaram os planos. Caixa por caixa, escolha por escolha. Marta ajudava à distância, enquanto Allyne se organizava para a mudança. Era difícil deixar a cidade onde cresceu, a família, os médicos. Mas havia um novo destino à frente. E nela, Marta.
No dia da mudança, choraram na despedida da família. Mas também sorriram, com as mãos entrelaçadas, dentro do carro, rumo a uma nova vida.
Morar juntas era um novo desafio. Manias que antes eram fofas, agora dividiam espaço com as tarefas do dia a dia. Mas, a cada noite, deitavam-se na mesma cama com a certeza de que estavam no lugar certo.
E pela primeira vez, nenhuma das duas dormia com medo da distância. Dormiam juntas.
Finalmente.
Capítulo 7 – Luzes, Promessas e Vida Nova
O som do mar ao fundo, o céu tingido por tons dourados e alaranjados, e uma fogueira acesa na areia. Era ali, entre as ondas e a brisa morna, que Marta e Allyne escolheram dizer sim — em um luau à beira-mar, cercadas por pessoas que aprenderam a amar o que as duas construíram.
Tudo foi planejado com o coração. Nada de luxos, apenas verdade.
Cangas coloridas estendidas na areia, lanternas de papel penduradas em cordas de sisal, e flores tropicais adornando os cabelos e os sorrisos. Os convidados, descalços, formavam um círculo em volta das duas mulheres que, de mãos dadas, sorriam uma para a outra como se o mundo inteiro houvesse parado para vê-las.
Marta usava uma saia longa branca e uma blusa rendada. Allyne escolheu um vestido fluido, com bordados discretos no busto. Ambas usavam colares de conchas e os pés tocavam a areia fria. A fogueira crepitava, testemunha silenciosa do amor que ardia ali.
— Marta — começou Allyne, a voz embargada —, você me encontrou no momento mais frágil da minha vida. Eu achava que estava quebrada… mas você me enxergou inteira. E hoje, ao seu lado, me sinto forte, amada, e completa.
— Allyne — respondeu Marta, segurando com firmeza as mãos da noiva —, você me mostrou que o amor pode ser leve mesmo quando o mundo pesa. Você me ensinou a cuidar e me deixou ser cuidada. Hoje, eu escolho você mais uma vez. E pra sempre.
Com as palmas batendo em ritmo e o som de um violão suave, elas se beijaram sob as estrelas. Dançaram até a madrugada, em volta da fogueira, cercadas por amor, música e mar.
Meses depois, um novo sonho começou a nascer — literalmente.
Allyne engravidou por inseminação artificial. Foi uma decisão pensada, desejada e vivida a dois, com lágrimas de alegria e mãos dadas durante cada consulta. Marta participou de todo o processo, escolheu o doador com ela, leu cada papel, foi em cada ultrassom.
O dia em que viram o coração do bebê bater pela primeira vez, Marta chorou como nunca.
— Tem uma vida aí — ela disse, beijando a barriga de Allyne. — Uma parte de você. Uma parte de mim. Nosso amor tomando forma.
E assim, de uma conversa no Tinder, surgiu uma história feita de promessas cumpridas, desafios superados, e agora… de uma nova vida a caminho.
Uma família.
Capítulo 8 – O Primeiro Choro
Os dias antes do parto foram cheios de expectativa, ansiedade e ternura. A barriga de Allyne crescia, e com ela, crescia também o amor de Marta, que falava com o bebê todas as noites, com a cabeça encostada no ventre da esposa.
— Você nem chegou e já é o nosso mundo inteiro — dizia.
Elas tinham escolhido o nome juntas: Aurora. Porque, como o próprio nome dizia, ela seria o recomeço, a luz depois das dores, a promessa de um novo dia.
O parto aconteceu em uma madrugada chuvosa. Allyne acordou com as contrações e chamou Marta, que pulou da cama em desespero carinhoso. Com a mala pronta, correram para o hospital, rindo entre as dores e nervosas até o último fio de cabelo.
Foram horas intensas, exaustivas, emocionantes.
E então veio o choro.
O som mais bonito que já ouviram.
Aurora nasceu saudável, com os olhos entreabertos e o rostinho tranquilo. Marta chorou descontroladamente quando a colocou nos braços pela primeira vez. Allyne, ainda cansada, sorriu, emocionada, ao ver as duas juntas.
— Ela tem seus olhos — disse Marta, tocando de leve a bochecha da bebê.
Os primeiros dias em casa foram uma montanha-russa: noites em claro, fraldas, choros… mas também sorrisos bobos, cheirinho de recém-nascido, e uma conexão ainda mais profunda entre elas.
Marta se dividia entre o trabalho e os cuidados com a pequena, mas fazia questão de estar presente em todos os momentos possíveis. Allyne, com toda sua entrega, mergulhava na maternidade com doçura e coragem.
Havia exaustão, claro. Mas havia também cumplicidade. E cada pequeno gesto — como um banho dado em dupla, um olhar trocado durante a amamentação, um cochilo a três no sofá — era um lembrete de que tudo valia a pena.
Aurora trouxe uma nova cor ao lar. Um novo ritmo. Um novo centro de gravidade.
E mesmo em meio ao caos das fraldas, das mamadas e dos cochilos interrompidos, Allyne e Marta sabiam que estavam vivendo o capítulo mais bonito da história delas.
Porque o amor agora tinha nome. E dormia ali, entre elas.
Capítulo 9 – Pequenas Grandes Conquistas
Aurora já tinha quase dois anos.
Corria pela casa com passinhos desajeitados, as mãozinhas agitadas no ar, e um sorriso que derretia qualquer tensão. Suas primeiras palavras tinham sido “mamá” e “táta” — sua forma carinhosa de chamar Marta e Allyne, respectivamente. E desde então, o lar era feito de palavrinhas inventadas, brinquedos espalhados, e música infantil tocando o tempo todo.
A rotina era intensa, mas agora bem ajustada. Marta organizava seus horários de trabalho para estar presente nos fins de tarde, quando Aurora ficava mais agitada. Allyne, que retomara os estudos à distância e fazia pequenos freelas de casa, assumia os turnos diurnos.
Mesmo com os cansaços, as olheiras e os desafios típicos da fase, algo brilhava constantemente entre as duas: a parceria. O amor que as uniu havia amadurecido, se transformado em algo mais sólido, mais calmo — mas ainda cheio de paixão.
Certa noite, depois que Aurora adormeceu entre as duas no sofá, Allyne olhou para Marta e sussurrou:
— Às vezes fico lembrando do Tinder… da primeira mensagem no hospital… nunca imaginei que viveria isso.
Marta beijou-lhe a testa e respondeu:
— A gente achava que estava se encontrando por acaso. Mas era destino. Era tudo isso esperando pra acontecer.
Nos fins de semana, elas levavam Aurora à praia. A menininha ria quando sentia a areia nos pés, jogava conchas nas ondas, e adorava ouvir a história do “casamento do papai sol e da mamãe lua”, que Allyne inventara para explicar o céu ao entardecer.
Aurora estava crescendo, sim. Mas Marta e Allyne também. Cada dia com ela as fazia rever prioridades, entender limites, valorizar pequenos silêncios.
Não era mais só um romance. Era uma vida construída com base no afeto, no respeito e na escolha diária de permanecer.
Uma família diferente do esperado, mas exatamente como precisava ser.
E o amor — ah, o amor — esse só crescia.
Capítulo 10 – Novos Sonhos, Novos Passos
O sol entrava pela janela da sala enquanto Aurora rabiscava um caderno com lápis de cor. Marta, sentada ao lado de Allyne, mexia em uma planilha no notebook. O assunto da vez era ousado — mas empolgante.
— E se a gente abrisse algo nosso? — disse Allyne, com brilho nos olhos. — Um espaço nosso, com a nossa cara… algo que represente o que a gente construiu.
— Tipo um café com livraria? — sugeriu Marta. — Ou uma lojinha com produtos artesanais e espaço infantil?
— Algo assim… um lugar onde famílias como a nossa se sintam acolhidas. Onde o amor não precise pedir licença.
As ideias começaram a brotar como sementes bem plantadas. Logo estavam rabiscando nomes, conceitos, possibilidades. A experiência de Marta com gestão e a criatividade de Allyne se complementavam perfeitamente.
Resolveram visitar uma cidade litorânea próxima, onde o ritmo era mais tranquilo e o turismo constante poderia favorecer o negócio. Se encantaram por uma casinha antiga perto da praça central, com paredes de pedra, janelas grandes e um quintal cheio de potencial. Era o cenário ideal para o sonho delas ganhar forma.
Enquanto isso, Aurora crescia feliz, cheia de perguntas e imaginação. Foi ela, com sua espontaneidade inocente, que lançou a pergunta durante um jantar:
— Mamá… a gente vai ter um bebê novo?
Marta e Allyne se entreolharam e riram, surpresas.
— Por que você perguntou isso, pequena? — questionou Allyne.
— Porque meu coração disse — respondeu Aurora, colocando a mão no peito.
Naquela noite, deitadas lado a lado depois que a filha dormiu, o assunto surgiu.
— E se a gente tentasse de novo? — sussurrou Marta.
— Outro filho?
— Outro amor pequeno.
Allyne sorriu, tocando a mão de Marta.
— Eu topo. Com você, eu topo tudo.
E assim, com planos de um novo lar comercial, um possível novo bebê, e um amor que nunca deixou de crescer, Marta e Allyne continuavam escrevendo sua história — feita de coragem, ternura, e laços que nenhum tempo ou desafio seria capaz de desfazer.
Afinal, para quem começou com uma simples mensagem no Tinder… tudo era possível.
Capítulo 11 – Dois Corações e Uma Porta Aberta
A casinha de pedra na cidade litorânea foi reformada com carinho, detalhe por detalhe. Allyne cuidou da estética — escolheu tons claros, plantas suspensas, frases de afeto nas paredes. Marta organizou toda a parte funcional — cardápio, fornecedores, estrutura.
O nome do lugar? "Aurora & Mar" — em homenagem à filha e ao elemento que uniu suas histórias desde o começo.
O espaço tinha cantinho de leitura, área kids, mesinhas ao ar livre, e uma estante com livros infantis, LGBTQIA+ e de acolhimento familiar. Serviam cafés especiais, bolos caseiros, pão de queijo quentinho e sucos naturais. Era mais do que um café — era um refúgio.
Na inauguração, Aurora cortou a fita com uma tesoura de papel decorada com fita rosa. Sorriu, bateu palmas e correu para brincar com outras crianças, enquanto Marta e Allyne se entreolhavam, emocionadas.
— A gente conseguiu — sussurrou Marta, abraçando a esposa por trás.
— E vamos conseguir muito mais — respondeu Allyne, sorrindo com os olhos marejados.
Alguns dias depois, num fim de tarde em que o café estava mais tranquilo, Allyne apareceu no balcão segurando um teste de gravidez.
Marta arregalou os olhos. Ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, o mundo pareceu desacelerar.
— Positivo?
Allyne mordeu o lábio inferior e acenou com a cabeça.
Marta contornou o balcão, a envolveu num abraço firme e as duas choraram ali mesmo, entre xícaras e livros infantis.
— Dois corações novos ao mesmo tempo — disse Marta. — Um dentro de você… e outro aqui, nesse lugar que criamos.
A notícia se espalhou entre os clientes mais próximos, e o “Aurora & Mar” passou a ter mais uma história em suas paredes: a de um amor que não parava de se reinventar.
Com Aurora ansiosa para ser irmã mais velha, o negócio crescendo aos poucos, e uma nova vida se formando no ventre de Allyne, o lar delas transbordava de gratidão.
E mesmo em meio ao cansaço, aos desafios e aos tropeços, uma coisa permanecia firme: o desejo constante de caminharem lado a lado, enfrentando o mundo com coragem, ternura… e muito amor.
Capítulo 12 – Entre Estrelas e Irmãos
A gravidez de Allyne foi tranquila, mas cheia de emoção. Dessa vez, com a experiência anterior, elas se permitiram viver cada etapa com mais calma — registraram fotos, criaram um diário da gestação, e envolveram Aurora em tudo.
— Você quer ajudar a escolher o nome do bebê? — perguntou Marta, certa noite, enquanto penteava os cabelos da filha.
Aurora sorriu, pensativa, e depois de alguns segundos respondeu com firmeza:
— Se for menina, quero que chame Estela, porque parece estrela. E se for menino… Gael, porque é bonito.
O ultrassom confirmou: seria um menino.
Gael.
A chegada dele estava prevista para uma noite de lua cheia — o que fez Allyne sorrir, lembrando do luau onde havia dito sim a Marta. Tudo parecia poeticamente conectado.
O parto foi mais rápido, mas igualmente emocionante. Marta segurou a mão de Allyne o tempo todo, e quando o choro de Gael ecoou pela sala, Aurora, que esperava com os avós do lado de fora, entrou saltitante, carregando um desenho da família com um bebê de cabelo azul.
— Ele vai ter cabelo azul? — perguntou séria.
Marta riu e a pegou no colo.
— No seu desenho, ele pode ter o cabelo que quiser.
Aurora olhou para o irmãozinho nos braços da mãe e ficou quieta por alguns instantes. Depois, encostou o dedo na mãozinha minúscula dele.
— Oi, Gael. Eu sou sua mana. E eu prometo que vou cuidar de você.
Os dias seguintes foram uma mistura doce de caos e ternura. Aurora quis participar de tudo: buscava fraldas, ajudava a embalar o irmão, contava histórias inventadas ao pé do berço. Marta e Allyne observavam com o coração apertado de amor.
O café Aurora & Mar agora tinha um bercinho no cantinho de descanso, uma rede onde Allyne amamentava Gael nas tardes tranquilas, e um painel de fotos com a família crescendo.
Amigos e clientes antigos apareciam para conhecer o novo integrante da história que tanto inspirava. Era como se o amor delas tivesse se tornado parte da cidade.
E à noite, quando todos dormiam, Marta olhava para Allyne com gratidão silenciosa.
— Nunca imaginei isso tudo — sussurrou ela.
— Eu também não — respondeu Allyne. — Mas eu não trocaria por nada.
Entre noites mal dormidas, mãos entrelaçadas, sorrisos bobos e pequenos milagres diários, Allyne, Marta, Aurora e Gael seguiram crescendo… juntos.
Porque família, afinal, é o lugar onde o amor escolhe morar.
Capítulo 13 – Tempestade e Raízes
Cinco anos se passaram.
Aurora agora tinha sete anos. Cabelos compridos, criatividade aflorada e uma paixão por escrever histórias com finais felizes. Gael, com cinco, era o oposto: inquieto, curioso e encantado por desmontar brinquedos para entender como funcionavam.
O café Aurora & Mar seguia como um ponto de encontro acolhedor, agora com oficinas infantis, saraus e tardes de contação de histórias. A rotina familiar era corrida, mas cheia de vida. Marta dividia seu tempo entre a administração do negócio e momentos com os filhos, enquanto Allyne se dedicava à curadoria de eventos no café e à maternidade com toda alma.
Mas, como toda história real, também veio a tempestade.
Uma forte chuva atingiu a cidade. Enchentes invadiram ruas, derrubaram árvores, e o café — que ficava perto da praça — foi atingido.
Na manhã seguinte, Marta estacionou o carro em frente ao local e ficou em silêncio, os olhos fixos na vidraça quebrada, nas cadeiras reviradas, no chão coberto de lama.
Allyne segurou sua mão.
— É só um lugar. A gente reconstrói.
— Mas era o nosso sonho.
— Nosso sonho não acabou. Ele mora na gente. Mora na Aurora e no Gael. Mora na forma como a gente nunca desiste.
Com a ajuda da comunidade, amigos e clientes, começaram uma pequena vaquinha online para reconstruir o espaço. Aurora gravou um vídeo com um cartaz desenhado à mão: “O café do amor precisa da sua ajuda”.
Em uma semana, o valor necessário foi alcançado.
Durante a reforma, organizaram eventos ao ar livre e venderam bolos caseiros para arrecadar mais recursos. As crianças ajudavam como podiam. E naquele processo, Marta percebeu algo que o tempo ensina devagar: às vezes, é no susto que a gente entende o quanto está enraizado.
Quando reabriram o Aurora & Mar, o novo espaço tinha mais luz, mais cor e um mural com a frase escrita por Aurora:
“Depois da tempestade, o amor sempre floresce.”
Marta e Allyne, exaustas e emocionadas, se abraçaram no centro do salão, com Gael correndo ao redor e Aurora lendo um poema no microfone.
A vida não era perfeita. Mas era delas. E cheia de amor.
Capítulo 14 – Quando o Tempo Sorri
Aurora agora tinha dezesseis anos.
Seus cabelos continuavam longos, mas agora tingidos de roxo nas pontas. Era sensível, sonhadora e dona de uma escrita tão poderosa que já havia vencido concursos literários. Estava prestes a lançar seu primeiro livro — uma coletânea de contos sobre amor, identidade e coragem.
Gael, com quatorze, continuava desmontando tudo o que via. Inventava máquinas, criava jogos, e dizia que queria ser “engenheiro de coisas mágicas”. Tinha o brilho inquieto de quem enxerga o mundo por dentro.
O café Aurora & Mar cresceu junto com eles. Agora tinha dois andares, uma pequena editora comunitária e oficinas gratuitas aos sábados. Marta e Allyne ainda cuidavam de tudo com zelo, mas agora também aproveitavam a vida com mais calma — caminhadas na praia, viagens curtas e noites de vinho e silêncio.
Na noite de comemoração do lançamento do livro de Aurora, o café estava cheio. Amigos, vizinhos, professores, clientes antigos… todos queriam prestigiar aquela menina que tinha crescido ali, entre estantes e xícaras.
Allyne subiu ao palco para apresentar a filha, com os olhos marejados.
— Quando escrevemos nossa história, nunca sabemos onde ela vai nos levar. Mas hoje, ao olhar pra Aurora, e pra esse café cheio de vida, eu entendo que o amor que plantamos lá atrás cresceu como uma árvore que dá sombra, flor e fruto.
Aurora leu um trecho do livro, emocionada. Depois, chamou Marta e Allyne ao palco.
— Esse livro só existe porque um dia duas mulheres tiveram coragem de se amar — disse ela. — E de transformar uma mensagem no Tinder em uma vida inteira.
O público aplaudiu de pé.
Gael apareceu com um bolo decorado com estrelinhas e circuitos elétricos desenhados com chocolate — sua homenagem ao passado e ao futuro.
Naquela noite, sob um céu pontilhado de estrelas, Marta e Allyne se olharam como no começo — com o mesmo encantamento, mas agora com mais história.
— Você ainda se lembra do primeiro “oi”? — sussurrou Marta.
— Eu me lembro de tudo. E quero lembrar pra sempre.
E ali, rodeadas por filhos, amigos e memórias vivas, elas entenderam: o tempo sorri para quem escolhe amar, apesar de tudo.
Porque algumas histórias não terminam. Elas florescem. Todos os dias.
Epílogo – O que Fica
Aurora caminhava descalça pela areia da mesma praia onde, anos atrás, suas mães haviam se casado.
Agora com vinte e sete anos, trazia nos olhos o mesmo brilho da infância — mas carregava também a calma de quem já atravessou algumas marés.
Gael morava em outro estado, estudando engenharia e inventando coisas que ninguém ainda entendia direito. Marta e Allyne, aposentadas, seguiam administrando o café por amor — e porque nenhuma delas conseguia ficar longe do cheiro de pão de queijo e das histórias.
Aurora escrevia profissionalmente. Era reconhecida, lida, amada pelas palavras que espalhava. Mas nenhum dos seus livros tinha tanto significado quanto aquele primeiro, lançado na adolescência, inspirado na história de amor que a fez nascer.
Sentou-se na areia com um caderno no colo. Abriu na primeira página. Lá estava a frase que carregava como bússola:
“O amor que nasce do cuidado transforma o mundo — e constrói futuros.”
Ela sorriu, olhou para o mar, e começou a escrever de novo.
Porque, para ela, enquanto o mundo coubesse em palavras, o amor de Marta e Allyne jamais teria fim.
Dedicatória:
A todas as pessoas que ousam amar, mesmo quando o mundo diz o contrário.
E especialmente às famílias construídas com ternura, respeito e presença.
Que nunca nos falte coragem para começar… nem fé para continuar.
Marta Marinho.